David Elkind
Durante as últimas duas décadas, temos progressivamente corrompido o modo de brincar das crianças, assumindo o controle e alterando a cultura lúdica da infância.
Brincar é o portal da criança para o conhecimento de si mesma e do mundo
Ao reinventar a experiência brincando, ela dá significado e valor à confusão estonteante da vida. O bebê transforma todo objeto que toca em algo a ser sugado. Desse modo, passa a conhecer os limites de sugar e a natureza dos objetos. Pela imitação de papeis adultos no jogo dramático, o pré-escolar descobre novos potenciais e capacidades humanas. A criança em idade escolar transforma objetos lúdicos, como peças do jogo de damas ou de xadrez e bolas de futebol ou beisebol, em ferramentas valiosas de intercambio social. Todas essas reinvenções contribuem para que ela amplie sus compreensão da realidade pessoal e social.
Durante as últimas duas décadas, entretanto, temos progressivamente corrompido o modo de pensar das crianças. Temos feito isso assumindo o controle e alterando a cultura lúdica da infância. Até pouco tempo atrás, havia uma rica linguagem e um saber que eram exclusivos às crianças e que eram transmitidos pela tradição oral. Eles consistiam de jogos, piadas, charadas, superstições e encantamentos que foram sendo revistos pelas sucessivas gerações conforme as transformações nas circunstancias sociais. Hoje, contudo, poucas crianças conhecem canções como Rain, rain go away, come again another day (“Vá, vá embora, chuva, e volte no outro dia” – Canção tradicional inglesa da época da Rainha Elisabeth I). Elas também não entendem as palavras mágicas “Step on a crack and break you back” (“Pise numa rachadura e quebre a espinha”. Segundo a superstição, comum entre as crianças e originária do século XIX, pisar nas trilhas do calcamento dá azar). As crianças contemporâneas conhecem, sobretudo a cultura da Disney, Pokemón e Yogiyo, que nós, adultos, criamos para elas. Essa cultura lúdica virtual é desonesta porque, embora se apresente como brincadeira de criança, não é criada pelas próprias crianças.
Quando criamos brincadeiras para as crianças, principalmente para as pequenas, apropriamo-nos antecipadamente de seu crescimento. Nós as privamos das oportunidades de aprenderem a seu próprio modo e em seu próprio ritmo. Isso não quer dizer que não tentemos criar ou educar as crianças, mas apenas que o façamos de maneira que tenham sentido, que sejam significativas e motivadoras para elas.
Eis um bom exemplo de uma mãe, com todas as boas intenções, tentando interferir no modo de brincar de seu bebê (Greoline, 1972, p. 13):
“Uma jovem mãe senta-se junto ao berço de seu primeiro filho (para o segundo já há menos tempo) e observa como ele tenta diversas vezes colocar um cubo vermelho sobre um azul. Depois de certo tempo observando isso, ela pergunta: ‘E onde está aquela sua bonequinha adorável?’. A criança abandona os cubos, procura a boneca e começa a lamber o rosto dela, e fica lambendo, lambendo até a mãe trazer o urso para a cena. ‘Grr, grr, aí vem o velho urso’. A criança brinca com ele com as mãos e por fim mexe uma perna para cima e para baixo, até que, é claro, a mãe entedia-se e chama a atenção da criança para a bola. Educadamente, a criança deixa-se distrair pela terceira vez e brinca com a bola. Assim, a mãe passa uma tarde agradável e está totalmente inconsciente de como ela interfere na persistência e na capacidade de concentração de seu filho. Ela impede que ele se acostume a perseverar em uma atividade e a se ocupar inteiramente com alguma coisa durante um longo período de tempo”.
Isso é exatamente o que acontece quando os pais de hoje colocam uma criança em frente a uma tela de computador, ou lhes dão brinquedos que são tão programados que deixam pouco ou nenhum espaço para a criança explorá-lo em seu próprio ritmo e a seu próprio modo.
Efeitos do brincar virtual prematuro
Quando as crianças são introduzidas no mundo virtual ao mesmo tempo em que são expostas ao mundo real, ou até antes disso, brincar perde muitas de suas funções adaptativas. Compare-se um bebê que sacode um chocalho para ouvir um som com outro que aperta um botão para ouvir uma vaca mugir. No mundo real, sacudir um chocalho realmente faz barulho, mas apertar um botão não faz uma vaca mugir. Quando deixados com seus próprios recursos, os bebês descobrem o mundo físico real. Como declara Richard Hartacher (1967, p. 27):
“Para o bebê, os brinquedos são objetos experimentais totalmente apoéticos que servem para explorar os santificados domínios da física. A exploração da física, portanto, começa muito antes da escola secundária. Bola, chocalho, colher, tudo cai no chão. Mas o som é diferente a cada vez. Pela repetição contínua, o ouvido aprende a distinguir as diferentes qualidades do som produzido pelos diversos objetos”.
Aprender a operar no mundo virtual é, em certos aspectos, mais fácil do que aprender a operar o mundo real. Ligar a televisão é um caso pertinente. Contudo, grande parte do mundo da televisão não é a realidade. O brincar virtual é corruptor porque impede a criança de adquirir muitas habilidades pessoais/sociais e o conhecimento físico que só pode ser obtido brincando-se no mundo real.
Quando os adultos assumem o controle sobre as brincadeiras e os jogos das crianças, eles necessariamente subtraem a capacidade delas de reinventar sua experiência. E é somente através dessa reinvenção que as crianças são capazes de extrair todos os benefícios do brincar para o desenvolvimento.
A importância de “brincar de verdade”
A despeito das afirmações acerca dos benefícios do Lapware e de programas como Telletubbies, não existem dados que apóiem os benefícios intelectuais, sociais ou comportamentais desse tipo de atividade virtual. Na verdade, a maioria dos dados sugere que esses programas provavelmente fazem mais mal do que bem. Por exemplo, temos assistido Vila Sésamo há mais de 30 anos. As crianças de hoje conhecem números e letras em idade mais precoce do que nunca; porém, não estão aprendendo a ler ou fazer cálculos mais cedo e melhor do que crianças que nunca assistiram a Vila Sésamo. De fato, considerando-se o número de crianças que estão sendo retidas no jardim de infância porque ainda não têm habilidades, o aprendizado precoce pode estar tendo um efeito negativo.
Um estudo de Hirsch-Pasek (1991) é instrutivo a esse respeito. A pesquisadora comparou crianças que freqüentam pré-escolas acadêmicas com outras que freqüentam pré-escolas centradas nas crianças e orientadas a brincar. As crianças que freqüentavam as pré-escolas acadêmicas eram menos criativas e mais ansiosas do que as que freqüentavam as pré-escolas que davam ênfase ao brincar. Elas também gostavam menos da escola do que as crianças com as quais foram comparadas. Os pré-escolares ensinados academicamente sabiam números e letras melhor do que o grupo que brincava, mas essas vantagens eram dissipadas quando as crianças ingressavam no jardim de infância???
Um estudo mais recente, de Coolahan, Fantuzzo e Mendez (2000), oferece mais evidencias sobre a importância de brincar no mundo real para crianças dessa faixa etária. Esses pesquisadores constataram que as crianças que possuem competência para brincar com seus amigos participam mais ativamente das atividades em sala de aula do que as que carecem dessas habilidades. Na realidade, as crianças que são inaptas para brincar são destrutivas ao brincar com os amigos e tendem a apresentar problemas de conduta e hiperatividade na sala de aula. (Coolahan er al., 2000). Essas são as crianças que mais provavelmente se ocupam com o brincar virtual antes do real.
Evidências ainda mais convincentes da importância de brincar provêm de outros países ocidentais que fizeram experiências com instrução acadêmica precoce, contraposta ao brincar no mundo real. Um relatório da Comissão Real Britânica incluía o seguinte parágrafo (Commons, 2000, p 122-123):
“A comparação com outros países sugere que não existe benefício em iniciar a instrução formal antes dos seis anos. A maioria dos outros países europeus admite as crianças à escola aos seis ou sete anos, após um período de três anos de educação pré-escolar que se concentra no desenvolvimento social e físico. Entretanto, os padrões de leitura e escrita e a capacidade aritmética costumam ser mais elevados nesses países do que na Grã-Bretanha, a despeito de ingressarem na escola em idade mais precoce”.
Os efeitos de corromper o modo de brincar das crianças ficam mais evidentes quando elas ingressam na escola. Aí que a falta de habilidades pessoais, sociais e oriundas do brincar torna-se mais visível. Falta de respeito pelos professores, intimidações, trapaças e incapacidade de concentração por longos períodos são hoje lugar-comum. Esse novo ambiente social é, ao menos em parte, atribuível à ausência de experiência lúdica no mundo real. Conseqüentemente, grande parte do tempo do professor é atualmente dedicada à disciplina, em vez de dedicada à instrução. E isso em uma época em que as demandas acadêmicas são maiores do que em qualquer período anterior. Esta é apenas uma amostra das evidencias dos efeitos negativos de impor realidades virtuais criadas por adultos às crianças antes de elas terem lidado com o mundo real a seu próprio modo.
Com certeza, sempre existiu alguma realidade virtual nas vidas das crianças pequenas. Nos contos de fada infantis, existem animais que falam e que se comportam como humanos, como em Os Três Ursinhos ou Os Três Porquinhos. No entanto, essas histórias encontram correspondência no modo de pensar das crianças pequenas, pois estas projetam qualidades humanas sobre os animais, de modo que os contos de fada tendem a condizer com seu modo de pensar. Como Bettelheim deixou claro, muitos contos de fada possuem um efeito terapêutico. Os personagens da realidade virtual, contudo, são fantásticos e não coincidem realmente com o pensamento infantil. Um bebê com uma tela de televisão na barriga ou um homem-esponja não são personagens que as crianças evocariam sozinhas. E é questionável se esses personagens terapêuticos. A necessidade primordial dos bebês é estabelecer vínculos com adultos significativos, e não com figuras bidimensionais animadas.
Reformando o brincar das crianças
Os efeitos negativos de uma exposição prematura à realidade virtual são mais intensos nos primeiros anos de vida. Precisamos limitar o tempo que bebês e crianças pequenas passam em frente à televisão: no máximo duas horas por dia e, se possível menos do que isso. Um bom kit de blocos de madeira é um dos melhores brinquedos que podemos dar para uma criança pequena. Outros materiais plásticos, como tintas e argila, oferecem, às crianças a oportunidade de brincarem sozinhas.
As experiências no mundo real são muito importantes para as crianças pequenas. A jardinagem é uma grande atividade interessante, pois elas plantam e vêem as plantas crescerem. Passeios ao ar livre e visitas a museus e aquários também ajudam a colocar as crianças em contato com a natureza. Não vejo nenhuma justificativa para colocá-las em esportes organizados ou individuais durante os anos de pré-escola. Por outro lado, as crianças pequenas devem ter a oportunidade de brincar com os amigos a seu próprio modo e com suas invenções. Disponibilizar acessórios como roupas, chapéus e sapatos para serem utilizados por elas em representações teatrais também são muito úteis. Em faixas etárias mais avançadas, precisamos monitorar a televisão e o envolvimento com a Internet e insistir para que as crianças tenham períodos de intervalo a fim de brincar com seus próprios recursos. Estabelecer um horário semanal para brincar em família é outro modo de garantirmos que as crianças aprendam as habilidades sociais e intelectuais oriundas de brincar no mundo real, dedicado a jogar, fazer uma tranqüila refeição em família ou visitar um parque, museu ou zoológico.
O mundo virtual da tecnologia moderna está aqui para ficar, e as crianças certamente precisam aprender a viver e operar nele. Meu argumento é apenas que elas precisam aprender e operar no mundo real antes de começar a viver e lidar com o mundo virtual. É preciso ter raízes alem de asas. Brincar de verdade dá à crianças as raízes; o brincar virtual lhes dá suas asas. Elas precisam de ambas e na ordem certa.
David Elkind - Doutor em Psicologia Clínica e professor de Desenvolvimento da Criança na Tufts University, em Medford, MA (Estados Unidos).
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